“O maior perigo para a liberdade é o poder arbitrário,
que não respeita limites nem presta contas a ninguém.”
(F. A. Hayek, A Constituição da Liberdade, 1960)
É indiscutível que a maior das ameaças às liberdades individuais é a concentração de poder, principalmente quando nas mãos do Estado. Mesmo quando hipoteticamente revestido de boas intenções, o poder concentrado fere as liberdades individuais e abre as portas ao autoritarismo. Do ponto de vista econômico, cria um ambiente coercitivo nocivo à espontaneidade dos mercados e das ações dos indivíduos, que leva à ineficiência. Por isso, o poder deve ser disperso; as instituições, descentralizadas tanto quanto possível em atenção ao princípio da subsidiariedade; e os mercados, livres, para que os indivíduos possam tomar suas próprias decisões sem burocratas e tecnocratas a tutelá-los e sugá-los, pagando cinicamente de bons moços. Friedrich Hayek (1899-1992) mostrou em O Caminho da Servidão (1944) e em A Constituição da Liberdade (1960), com argumentos econômicos, jurídicos e de filosofia política, que as tentativas de concentrar poder corroem inevitavelmente as liberdades individuais e levam a consequências nefandas, até o limite da tirania e do autoritarismo, mediante a supressão da pluralidade de pensamento, da competição e das ordens espontâneas características das ações individuais voluntárias.
Vale a pena mencionar os principais pontos de sua crítica à concentração de poder. O primeiro é que ela leva à corrosão — e eventualmente à perda total — das liberdades individuais, que não são apenas definidas como ausência de coerção, mas também enfeixam a capacidade dos indivíduos de tomarem decisões autônomas com base em seu conhecimento particular e de acordo com suas preferências subjetivas e dados objetivos. A concentração de poder com sua inseparável centralização, ao impor a vontade dos planejadores sobre a dos indivíduos, elimina a dispersão do conhecimento e a coordenação voluntária e natural pelo processo de mercado.

Em segundo lugar, poder concentrado gera ineficiência, uma vez que nenhum planejador central, por mais bem-intencionado que seja, pode dispor do conhecimento “local”, ou das circunstâncias específicas de tempo e lugar, e muito menos processar a enorme quantidade de informações necessárias para coordenar uma sociedade complexa.
A terceira desaprovação é que a centralização de poder conduz à tirania, pois, quando acumula poder, o governo cedo ou tarde necessariamente vai precisar eliminar as dissidências e limitar as liberdades para garantir a execução dos seus planos. É preciso também ter em mente que, mesmo em sociedades democráticas, a concentração de poder pode levar a uma espécie de “despotismo brando”, que vai se ampliando com o tempo até desaguar em opressão, tal como aconteceu com o nazismo e o comunismo, que — é bom jamais nos esquecermos — apareceram como se fossem regimes angelicais portadores de igualdade e justiça, e depois deram no que sabemos.
A quarta é que a concentração de poder leva à arbitrariedade nas decisões, uma vez que, sem os checks and balances, quem detém o poder tende a abusar de sua autoridade, daí a ênfase de Hayek na defesa do Estado de Direito (rule of law) como imprescindível para limitar esse poder, garantindo que as normas de conduta sejam gerais, prospectivas, previsíveis, impessoais e jamais sujeitas à vontade de indivíduos ou grupos que detêm o poder.

A quinta condenação é que o poder concentrado amordaça a pluralidade de ideias e a inovação, dado que apenas a existência de competição e de liberdade individual é que provê estímulos para que diferentes abordagens sejam testadas, levando a descobertas e novas soluções adaptadas às necessidades locais. Ora, um poder centralizado, ao impor uma visão única, elimina essa pluralidade, o que resulta em conformismo, apatia e estagnação.
Ludwig von Mises (1881-1973) compartilhava com Hayek essas desconfianças, mas suas críticas eram baseadas em argumentos econômicos e na defesa intransigente do liberalismo clássico. Via a centralização do poder como uma ameaça à liberdade individual, à eficiência econômica e à ordem social espontânea, com ênfase ainda mais acentuada que Hayek na incompatibilidade entre intervencionismo estatal e mercados livres. Defendia que a melhor forma de evitar a concentração de poder é limitar o papel do governo ao mínimo necessário — proteção à vida, à liberdade e à propriedade — e deixar o restante a cargo da “soberania do consumidor” que caracteriza os mercados, em que os indivíduos decidem sobre suas próprias escolhas.
Em obras como Liberalismo (1927) e Ação Humana (1949), argumentou que a intervenção estatal na economia — via regulamentações, controles de preços ou estatizações — leva à concentração de poder. E via o intervencionismo — a social-democracia ou “terceira via” — como um “meio-termo instável” entre o capitalismo de livre mercado e o socialismo. Em resumo, para Mises intervenções criam distorções econômicas (como desemprego, escassez ou inflação), que o governo então tenta consertar com mais intervenções, gerando um processo de aumento progressivo do poder estatal e de diminuição da liberdade individual.

Na verdade, Mises, ao criticar regimes com poder centralizado, enfatizava mais a lógica econômica e a impossibilidade do cálculo econômico, enquanto Hayek acentuava implicações filosóficas e políticas, como a erosão da liberdade e a quebra das ordens espontâneas. Sem dúvida, Mises era mais radical em sua aversão ao intervencionismo, rejeitando qualquer papel para o Estado além de funções mínimas, enquanto Hayek itia um governo limitado, mas com regras claras para preservar a liberdade.
O também economista e filósofo político Thomas Sowell (1930), por sua vez, é outro crítico contundente da concentração de poder no Estado, mas também da centralização nas mãos das elites intelectuais e instituições que buscam moldar a sociedade segundo suas visões. Em Os Ungidos: a Fantasia das Políticas Sociais dos Progressistas (1995), ele critica essas elites e vê a concentração de poder nelas como perigosa, já que os ungidos costumam impor suas ideias sem levar em conta a realidade e os custos das políticas que preconizam.
Embora Sowell compartilhe com Hayek e Mises a desconfiança na concentração de poder, sua abordagem é mais empírica e menos teórica. Em resumo, Mises foca a lógica econômica do mercado livre, Hayek enfatiza a ordem espontânea e o risco de autoritarismo, e Sowell, por meio de dados históricos e exemplos concretos, ilustra as falhas das políticas centralizadas, com uma linguagem ível e concentração nas consequências práticas. Ele também dá mais atenção às dinâmicas culturais e às elites intelectuais do que seus predecessores da Escola Austríaca.

Mencionei esses três autores (há vários outros) para enfatizar que a principal preocupação dos defensores das liberdades deve ser com a concentração do poder e, portanto, com a elaboração de mecanismos para contê-la.
Centralização de poder e censura digital
A censura digital está na ordem do dia no mundo (ainda) livre, com tentativas de governos de moderação de conteúdo em plataformas, regulamentações como o Digital Services Act na Europa e outras iniciativas para combater supostas “desinformações”.
A Suprema Corte do Brasil retomou nesta semana o julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), que trata da responsabilização das plataformas digitais por conteúdos ilícitos postados por usuários. A discussão é se as plataformas devem ser responsabilizadas apenas após o descumprimento de ordem judicial para retirada de conteúdo, como previsto no artigo 19, ou se podem ser obrigadas a remover conteúdos “ofensivos” ou que incitem “ódio” de forma extrajudicial, mediante simples notificação.

Alegam os defensores da regulamentação que ela é necessária para combater crimes tais como pornografia infantil, terrorismo, incitação a suicídios e automutilações. É evidente que se trata de um discurso para encobrir o verdadeiro objetivo, que é, pura e simplesmente, de censurar a liberdade de expressão, uma vez que todos esses crimes já estão devidamente tipificados; e as respectivas punições, estabelecidas. Ademais, responsabilizar as plataformas por publicações de seus membros parece ser algo tão incoerente como, por exemplo, culpar a Tramontina por um crime de esfaqueamento, o que obrigaria a empresa à tarefa impossível de vigiar permanentemente todos os consumidores de seus produtos.
Nunca é demais lembrar que se trata de assunto de competência exclusiva do Legislativo, mas o argumento para tentar justificar a votação no STF é o de que, já que os representantes do povo não se manifestaram, caberia ao Judiciário decidir, como se a ausência de manifestação por parte dos congressistas não significasse simplesmente que estão de acordo com o que estabelece o Marco Civil, ou seja, que a rigor não há necessidade alguma de discutir o assunto, pelo menos por enquanto. Porém, neste estranho Brasil dos nossos dias, em que as atribuições constitucionalmente estabelecidas de cada um dos três Poderes vêm sendo diversas vezes desrespeitadas por parte de um tribunal cuja função principal é zelar pelo cumprimento da Constituição, pode até parecer natural para muitos que um Poder invada os demais e fique tudo por isso mesmo.

Estamos indubitavelmente diante de um caso de lawfare, que é o uso da legislação como instrumento para atingir objetivos políticos, mediante assédio na forma de ameaças de processos judiciais e outras formas de pressão legal para intimidar e calar adversários ou destruir a sua credibilidade. É preciso deixar claro que qualquer “moderação de conteúdo” em plataformas que permita remover postagens com base em “desinformação”, ou “fake news”, ou “discurso de ódio” significa uma concentração perigosa de poder, inaceitável sob qualquer aspecto. O que é “desinformação”? O que significa “fake news”? O que — cargas d’água — significa “discurso de ódio”? E quem vai decidir sobre isso? Com base em quê? Ideologia? É evidente que se trata, pura e simplesmente, de censura.
A verdade é que o consórcio que concentra o poder hoje em nosso país flerta sem qualquer cerimônia com a censura, haja vista a recente declaração do presidente de que pediria ao ditador chinês Xi Jinping para enviar um representante para “assessorar” nossas autoridades. Ora, quem não sabe que o modelo chinês — o Grande Firewall — é um sistema de censura digital dos mais pesados do mundo? Quem desconhece que plataformas como X, Facebook e YouTube estão bloqueadas desde 2009? Ou que o governo controla com mão de ferro o o à internet por meio da Cyberspace istration of China (CAC)? Ou, ainda, que a Lei de Cibersegurança, de 2018, obriga as empresas a registrarem usuários com seus nomes reais e a armazenarem dados localmente, além de bloquear conteúdos considerados “sensíveis”, como, naturalmente, quaisquer críticas ao Partido Comunista?
Se for isso (ou algo parecido com isso) o que pretendem implantar aqui, significa que a nossa liberdade está seriamente ameaçada. Será que o povo deseja também isso? Com a palavra, o Congresso.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.
Instagram: @ubiratanjorgeiorio
Rede X: @biraiorio
Leia também “Um governo reborn”
Oportuno artigo. O consórcio atualmente instalado em Brasilia precisa da censura para sobreviver.
E como não estão do lado da verdade, desejam mídia unica, como da Rede Globo, onde è pagar, com nosso dinheiro, para falar o que eles querem.
Vejo o Brasil, a cada dia que a, indo cada vez mais p’ro “beleléu” em todos os setores: segurança, educação, economia, liberdade de expressão…
Estamos nos aproximando, perigosamente, do “Ponto de Não Retorno”.
O Poder Legislativo foi subpujado pelos demais Poderes. Perdeu totalmente a sua significância.
Mais uma vez um primor de artigo de meu “chará” magnífica conexão aos mestres da escola austríaca ! Parabéns