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Edição 261

Quaresma na agropecuária. Húbris no Judiciário

A Quaresma propõe um tempo oposto à desmedida e ao autoritarismo de juízes da alta Corte, cuja primeira obrigação seria defender e respeitar a primeira das leis, a Constituição

Niment under stesich groser Ding,
die im zu thun unmuglich sindt.”
[“Aquele a quem os deuses querem destruir,
primeiro deixam-no louco.”]
(Antigo provérbio alemão)

No ado, a Quaresma era um tempo forte de reflexão, conversão, perdão e caridade, marcado por símbolos religiosos e pela busca de obediência à Lei de Deus. Hoje, sinais e exercícios quaresmais quase desapareceram das igrejas. O sentido de conversão, caridade e humildade diminuiu na sociedade e ainda mais na mais alta Corte, cujo plenário se reúne sob a imagem de Cristo crucificado e no qual ocorrem tantas desmedidas. Onde segue a Quaresma? Na natureza e na produção agropecuária. Aleluia!

Na natureza, as quaresmeiras florescem no tempo da Quaresma, daí seu nome. A Igreja Católica identificou símbolos quaresmais nessas plantas da enorme família das melastomatáceas (69 gêneros e 1.436 espécies no Brasil), típicas da Mata Atlântica e presentes em outros biomas. Na florada, a quaresmeira (Tibouchina granulosa) reveste-se de cores quaresmais, do roxo ao púrpura, sinais de mortificação e luto. Anuncia a proximidade da Paixão de Cristo e da Páscoa. O gênero Tibouchina é muito utilizado em paisagismo e jardins. As cores do manacá da serra (Tibouchina mutabilis), na mesma planta, vão da Quaresma à Páscoa. Suas flores roxas (morte) em alguns dias tornam-se lilases (luto) e logo brancas (ressurreição). Nesse período de abstinência e sobriedade, cabe observar: flores de quaresmeiras e manacás da serra não têm perfume. O modelo vegetal da quaresmeira ilumina corações e a Mata Atlântica de roxo, branco e lilás. E não é só ela.

Árvore Quaresmeira (Tibouchina granulosa) no campo | Foto: Nancy A. Kunihiro/Shutterstock

Ainda na natureza, no final do verão, florescem diversos maracujás, da família das ifloráceas (20 gêneros e 630 espécies, sobretudo lianas). São plantas cheias de simbolismos eclesiais. Em inglês, francês, italiano e alemão, por exemplo, o maracujá é chamado de fruto da paixão. Não é a paixão dos casais. É a Paixão de Cristo. Essa designação inicial dos maracujás foi criada, por volta de 1610, pelos missionários jesuítas na América do Sul, por suas semelhanças com objetos e marcas da Paixão de Cristo. O nome foi adotado por Lineu, na sistemática das plantas, em 1753.

Nessas trepadeiras, as garras ou gavinhas lembram os açoites e flagelos. Na flor, o formato dos três estiletes evocam os cravos da crucifixão. As cinco anteras correspondem às chagas no corpo de Cristo. O círculo de filamentos de cor roxa lembra a coroa de espinhos. O formato esférico da fruta evoca o mundo, a salvação do planeta: o fruto da Paixão. No Brasil, várias Capelas do Santíssimo são decoradas com pinturas de flores de maracujá, como na Matriz do Bom Jesus, em Monte Alegre do Sul.

A Flor de Maracujá significa a Paixão de Cristo, por isso, é também conhecida como “Flor da Paixão” | Foto: Reprodução

Na agropecuária, a produção é pautada pela Quaresma. Os cristãos, na preparação para a Páscoa, buscam viver de maneira mais simples, jejuando, exercendo o autocontrole, perdoando e tendo uma reflexão espiritual mais intensa. Sobretudo às sextas-feiras, eles trocam a carne vermelha pela branca (peixes e frangos) e por ovos, verduras e legumes. É uma forma de penitência, de autocontrole e de honrar o sacrifício de Cristo.

Na Quaresma, a demanda por ovos e peixes aumenta e culmina com o bacalhau da Sexta-Feira Santa. Ovos, frangos e legumes, produtos de ciclo relativamente curto, exigem previsão, planejamento e aumento da produção pelo agronegócio em todo o país. Isso para garantir o abastecimento dos mercados e a chegada à mesa do consumidor.

Os supermercados, elo final entre produtores, agronegócio e consumidores (Revista Oeste, edição 133), se preparam para a Páscoa. Redes atacadistas e varejistas se antecipam e montam grandes estoques dos produtos mais consumidos na Quaresma e na Páscoa. No campo, o trabalho é intensificado para atender ao aumento de demanda, antes e durante a Quaresma.

Bacalhau, prato típico da época da Quaresma | Foto: Shutterstock

Se os preços dos alimentos já estão altos, os dos ovos e da tilápia podem subir ainda mais, por causa da Quaresma e de uma oferta incapaz de suprir totalmente o mercado. Os valores de ambos atingiram recordes em suas séries históricas no primeiro trimestre, segundo o Cepea.

Na produção de ovos, a elevação do dólar e dos custos de produção, a inflação nos insumos e as altas taxas de juros levaram muitos avicultores ao descarte de galinhas poedeiras nos últimos meses. Resultado: redução da oferta e aumento do preço ao consumidor, com a demanda aquecida.

No caso da tilápia, seu ciclo de produção é relativamente longo. Para um animal atingir o tamanho de abate são necessários cerca de seis meses. Em agosto de 2024, no início do povoamento de tanques e criatórios, várias frentes frias chegaram ao Sul e Sudeste. Elas causaram mortalidade e atrasos no início do alojamento de alevinos e juvenis da tilápia. Além disso, as incertezas relacionadas à política e à economia levaram produtores a diminuir os investimentos e o número de alevinos alojados.

O maior contato com ovos, símbolos de vida e renascimento, está na origem de artes como a pintura e a decoração das cascas, muito presentes no Sul. Ou da confecção de ovos madeira, decorados com símbolos pascais: as pêssankas, da tradição eslava. Essa arte quaresmal culminou na criação de joias, os ovos de Fabergé, oferecidos pelos tzares Alexandre III e Nicolas II da Rússia às esposas respectivas, Maria Feodorovna e Alexandra Feodorovna, para a festa da Páscoa. O século 20 gerou o ovo de Páscoa, de chocolate. Seu preço supera o das pêssankas e evoca o das joias.

Ovo de chocolate da Páscoa | Foto: Shutterstock

Tilápias ou bacalhaus, os peixes são símbolos polissêmicos de fertilidade por sua prodigiosa capacidade de reprodução e abundância de ovos. No Cosmos representam a 12ª e última constelação do zodíaco (19 de fevereiro a 21 de março). O peixe é um dos símbolos de Jesus Cristo e do Cristianismo. Marcaram o início do ministério de Jesus na Galileia (Lc 5,1-11), com uma pesca milagrosa. E o fim, antes da Ascensão. Após outra pesca milagrosa (Jo 21,1-14), Jesus consumiu o peixe como um alimento eucarístico, prova de sua ressurreição (Lc 24,41-43).

Em grego, Iktus (ἰχθύς), “peixe”, é o ideograma de Jesus Cristo. Cada uma das cinco letras é vista como inicial das palavras: “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”. Iktus: I de Iesus, “Jesus”; K de Kristos, “Cristo”; T de Theu, “Deus”; U de Uios, “Filho”; S de Soter, “Salvador”. Daí a presença de numerosas figurações de peixes em monumentos cristãos (pias batismais, igrejas, túmulos, altares etc.) e até em evangélicos automóveis.

“Quaresma” vem da contração de “quadragésima”, referente ao 40º dia, quando se encerra o período. Domingos não fazem parte da Quaresma. Na prática, a Quaresma não dura 40 dias. Estende-se sobre 46. No Ano da Graça de 2025, a Quaresma começou em 5 de março (Quarta-Feira de Cinzas) e vai até 17 de abril (Quinta-Feira da Paixão). Pela primeira vez em 1,7 mil anos, os cristãos, incluindo os ortodoxos, celebrarão juntos a Páscoa, em 20 de abril. A data coincidiu em seus calendários.

O jejum na Quaresma existe desde os primeiros séculos do Cristianismo. No Concílio de Laodicéia (363-364 d.C.) foi prescrito o uso de pão e frutas secas na Quaresma. A Igreja sugere abster-se de algo habitual: jejum de internet, celular ou redes sociais, por exemplo. E fazê-lo em todas as sextas-feiras da Quaresma. Para muitos, esse autocontrole é inimaginável. Atenção especial à humildade e ao perdão. Tempo de conversão e caridade.

Paradoxo atual, a Quaresma propõe um tempo oposto à desmedida e ao autoritarismo de juízes da alta Corte, cuja primeira obrigação seria defender e respeitar a primeira das leis, a Constituição. Tomados pela húbris (ὕβρις), alguns ultraam toda medida, agem com presunção e arrogância. O desprezo temerário pelo espaço pessoal alheio e a falta de controle dos próprios impulsos nos tribunais é a expressão da húbris, ou hybris, da mitologia grega: sentimento violento, descomedido, inspirado por paixões ideológicas. Aqui, como na tragédia grega, os inocentes pagam.

Avós, pais e mães inocentes, idosos e deficientes, arão Quaresma e Páscoa em prisão, separados de seus filhos (órfãos de pais vivos) e familiares, condenados a penas absurdas e desmedidas, sem direito a ampla defesa e recursos processuais. São presos políticos. Vítimas invisíveis para boa parte da mídia e para os ditos defensores dos direitos humanos. Sob o silêncio e a omissão vergonhosa da Conferência Episcopal e da claudicante Ordem dos Advogados. Do Brasil, e não dos brasileiros.

Manifestação Rio de Janeiro - anistia
Manifestação no Rio de Janeiro pede anistia aos presos do 8 de janeiro | Foto: Reprodução/Instagram

Condenação ou anistia? Aristóteles definiu a húbris como humilhar a vítima, não por algo acontecido ou do qual tenha participado, mas por descaso e ódio em relação a ela. Não é vingança: acerto de conta por erro cometido. É desprezo total pelo Outro, achando poder “fazer tudo o que quiser”. Considerada doença por seu caráter irracional e desequilibrado, a húbris terminava severamente punida pelos deuses. Assim será. Aquele a quem os deuses querem destruir, primeiro deixam-no louco, entregue às Erínias.

A Páscoa é impregnada de imagens agrícolas. Os cristãos são estimulados a tornarem-se terra fértil para a semente da palavra de Deus, pregada de forma intensa na Quaresma (Lc 8,5-15). As cinzas impostas na abertura da Quaresma nada têm a ver com arrependimento de abusos carnavalescos. A Quarta-Feira de Cinzas olha para a frente no calendário. Não para trás. As cinzas são um chamado à fertilidade, à floração, à fecundidade e à essência.

O Sermão da Sexagésima foi pregado na Capela Real de Lisboa, em 1655, pelo padre António Vieira, o imperador da língua portuguesa. Da “parábola do semeador” (Lc 8,5), Vieira destacou logo o trecho inicial: “Saiu o que semeia a semear”. Não diz o evangelho, como em muitas traduções, “saiu um semeador a semear”, e sim “saiu quem semeia, a semear”. Há distância entre título e função. Dirigindo-se a Corte, realeza, nobreza, ministros de Estado e autoridades, Vieira explica essa distância tão atual: o semeador não semeia, o governo não governa, o pregador não prega, os bispos não pastoreiam e os juízes não julgam com justiça. Assim, aqui, estamos.

Conclui Vieira, e cada frase vale quanto pesa: “Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus. E saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum”.

Leia também “A saga amazônica de Pedro Teixeira — Parte 2”

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9 comentários
  1. RCB
    RCB

    A religião coloca Deus e os homens em relação de fé. Na Quaresma os católicos em oração e jejum reconfirmam esse vínculo e renovam o amor pelo Criador e Dele por suas Criaturas. Desrespeitar essa Fortaleza é aviltar a essência da Civilização Cristã. A mão da Justiça Divina é pesada.

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Que nosso Brasil possa ter em breve este homem de volta dentro de sua área no governo. Excelentes artigos.

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Isso é um Elon Musk literário, esse tal de Evaristo, isso é um febrento homi. É melhor do que a IA

  4. Gustavo Amaral
    Gustavo Amaral

    Texto pesado, duro e claro, tal qual o momento exige!

  5. Maria França Simões
    Maria França Simões

    Parabéns pelo ótimo trabalho Que Deus abençoe atodos

  6. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    Excelente reflexão
    Nos faz mesmo pensar que alguma coisa cosmica esta acontecendo e precisamos ficar atentos.
    Que Deus nos ajude nos mostrando os caminhos que temos que trilhar pra conter essa insanidade politica e judicial que estamos vivendo
    Anistia ja para os presos politicos

  7. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Muito interessante e oportuno justapor quaresma e perdão, no caso, anistia aos condenados e perseguidos opositores desse regime nefasto que sequestrou o país. Embora eu seja ateu, me tocou. Grato!

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